quinta-feira, 10 de outubro de 2013

A BANALIZAÇÃO DO MAL




Compartilho este texto com os leitores de nosso blog, embora extenso; para reflexão!

Blog Sombra Lua

“Não peço nada, eu não quero me envolver,
Na rua nua em cada cara uma desgraça.
Há tanta gente procurando esquecer,
Que a vida é à-toa, a morte chega e tudo passa.

Não peço nada, eu não quero me envolver,
Até a lua tem as nuvens por mordaça.
Assassinada mesmo antes de nascer,
A esperança sobe aos céus como fumaça.”

In: Um Grito Parado No Ar – de Toquinho e Gianfrancesco Guarniere


A mulher é assassinada pelo ex companheiro que não aceita a separação. Família de policiais é dizimada numa única noite. Policiais e juízes honestos são exterminados. Moradores de favelas desaparecem nas mãos da polícia que deveria promover a “pacificação”. Adolescente mata colega por ciúmes do namorado. Homem que denunciava extratores ilegais é abatido em emboscada. Mulher mata mãe de um recém-nascido para sequestrá-lo. Gays são supliciados em plena avenida Paulista. Mulheres são perseguidas, violentadas e mortas.

Mata-se da mesma forma com que se exterminam baratas.

E seguimos assistindo, entre perplexos e horrorizados, uma violência imensa e crescente contra inocentes e vulneráveis seres humanos.

A filósofa Hannah Arendt nos alertou para o fato de que por trás de todo o mal existem pessoas banais escondidas em seus gabinetes. Frisou que o mal carrega em si o potencial de se espalhar como um fungo e que isso só acontece por causa da incapacidade das pessoas pensarem sobre o que está ocorrendo de fato. Sobre o que elas e seus pares estão fazendo de verdade. No fundo, sobre as consequências de seus atos.


Propôs, enfim, que deixássemos de enxergar banalidade em qualquer forma de mal concebendo, enfim, a espantosa pluralidade da condição humana. Que prestássemos muita atenção na perigosa banalização do mal.

O que vemos hoje é a institucionalização do mal, democraticamente distribuído entre os poderes constituídos e absolutamente mergulhado em um sistema político que promove a violência e a coerção – que são aceitas como “parte integrante”  do processo civilizatório monopolizado pelo Estado que, em nome de salvaguardar-se, institucionaliza e burocratiza o mal.

A audiência da novela das nove onde destacam-se e, de certa maneira, enaltecem-se comportamentos pouco éticos e profundamente amorais da esmagadora maioria dos protagonistas, é um exemplo bastante contundente deste panorama. Ali, de tudo o que há de ruim existe um pouco: a mocinha pobre que sonha em dar golpe da barriga incentivada pela mãe que, provavelmente, se prostituiu na juventude; o jovem médico que flerta com o chefe homossexual para subir de posto; a médica que registra ilegalmente uma criança e, depois, provoca a morte de uma enfermeira; o irmão que joga o sobrinho no lixo; o médico que trai a esposa reiteradas vezes; a esposa que tolera tais mal tratos; o estudante carreirista que usa uma mulher mais velha para se dar bem; a moça gordinha desesperada para transar; a prostituta que casa com o filho homossexual do amante; a secretária que dá o golpe…. são tamanhas sandices e mau-caratismos que torna-se desnecessário continuar a contar.

A degradação humana, filtrada por oportunistas critérios de classe – que tantas vezes apontam para a responsabilidade da miséria e do crime ‘que descem a favela’, fechando os olhos para os motivos que fizeram a miséria e a favela existirem – é ainda revertida como sucesso de público para o espetáculo humano que, à moda de uma tragédia grega, é mostrado pelos canais de TV ao vivo e em cores, alcançando uma plateia anestesiada e incapaz de articular causas e consequências.


E por que ficamos tão reduzidos em nossa capacidade crítica frente a claros e flagrantes exemplos de violência e injustiça?

Sabemos que o aparelho psíquico não tem condições de elaborar a visão de um episódio violento sem ser atingido de maneira brutal na sua essência. Logo, numa ação de autodefesa, nosso psiquismo passa a observar a cena como se esta fizesse parte de uma novela, como se não fosse real. E toda a reflexão crítica daquele ato em si fica comprometida ou nem sequer é realizada.

Em outras palavras: cada vez que uma cena de violência é exaustivamente apresentada na televisão, por exemplo, nosso psiquismo a captura com o mesmo impacto. Todas as vezes – e como se fosse a primeira vez. Isso traz repercussões psíquicas. Podemos nos tornar fóbicos, neuróticos, delirantes ou, simplesmente, alienados.

Nesta medida é possível sentir-nos bons e justos diante de um mundo mesquinho e cruel, como se não fizéssemos parte deste universo. Há uma certa descarga emocional quando experimentamos esta (aparentemente) confortável e distante visão do ‘mal alheio’. Porém, é justamente ela que nos faz permanecer imobilizados. Temos, daí, a impressão de que tudo ‘aquilo’, que obviamente é errado e insano, pertence ao outro; e tal consciência parece suficiente para nos fazer adquirir algum mérito moral.

Não nos envolvendo com o mal, tornamos-nos parte dele no que ele traz de mais nefasto: o silêncio.


E, então, matar torna-se banal.

O pai que mata a filha. O vizinho que mata o síndico. A mãe que mata o marido. O policial que mata o suspeito. O filho que mata a avó. O operário que mata o supervisor. O assaltante que mata a vítima. O patrão que mata a empregado.

O suspeito chega na delegacia e é torturado para falar o que desejam que conte. Ele não fala e morre sob tortura. Se você não fizer o que se exige alguém pode lhe matar. Sua vida não tem quase nenhum valor. Se você for pobre este valor torna-se ainda menor.

E, deste jeito, a vida perdeu grande parte do seu significado único e sagrado. A cultura do medo, associada à cultura do mal, transformou esta magnífica e preciosa experiência em algo cada vez mais habitualmente descartável.
Por isso, é urgente que, neste processo de naturalização da sociedade e de artificializarão da natureza, a coletividade reencontre o criativo olhar para si e para o mundo, de uma maneira dinâmica e dialética. Propondo-se a dissolver tanto mal e tornar a violência um dos atos finais do intolerável clima de cumplicidade que impera nesta sociedade selvagem e indiferente.


Que os bons parem de fazer a cômodo moderação perante o barulho dos maus!

Ou continuaremos morrendo como cavalos.

Afinal, como diria Horace McCoy em seu romance retratando o auge da depressão norte-americana quando a maioria da população, sofrendo com o desemprego, carecia de uma vida digna, “They shoot horses, don’t they? ” (Eles não matam cavalos?)

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